Ana Maria e o Coronel


Aninha e o Coronel


Tânia Souza

       Era o ano de 1936, na pequena Vista Azul. Duas forças sustentavam a lei: Os fazendeiros e os militares, pois o quartel e a madeireira mantinham a economia local. O povo, entre pequenos agricultores, madeireiros e soldados rasos, aceitavam sem questionar os juizes e os eventuais desmandos.

     Terra dura principalmente para mulheres, ali vivia Ana Maria, ou Aninha, já conhecia o mundo em que vivia dentro dos seus 19 anos e, como ensinava a mãe, sabia bem o seu lugar. Quando o pai, um bruto que espancava a mãe e os filhos pequenos, morreu num entrevero na fronteira, deixando a família sem o soldo, assumiu o seu papel ao lado da mãe no sustento da casa, dividindo-se entre o roçado da família e as casas dos oficiais da cidade, só não trabalhava para os fazendeiros; para meninas como ela, a vida nas fazendas era um pouco mais difícil. Cuidava geralmente da casa e dos pequenos herdeiros, com estes príncipes esperando a hora de mando, aprendeu as letras e o mundo dos livros, enquanto as mulheres passavam o dia se lamentando da ausência da terra natal ou criticando as poucas amigas que possuíam.

     As mulheres da idade de Ana Maria já estavam casadas ou com pencas de filhos, envelhecidas nos seus olhos tristes. Por isso, ela fugia da regra; o corpo miúdo, desenvolvera-se pouco, os modos arredios afastavam os pretendentes. Quando percebeu os olhares nas suas pernas morenas e no volume nos seios, lembrou dos murros do pai no rosto envelhecido da mãe e desfez a barra dos vestidos, amarrou bem os seios com uma faixa, tentando livrar-se do que entendia como um incômodo. Maria descobria-se mulher, entretanto guardava-se como menina e, assim, abandonava os empregos quando os filhos que moravam nas capitais voltavam nas férias e tentavam beliscá-la a toda hora pelos cantos. Dos mais insistentes pretendentes era João, um madeireiro rude, que oferecera até um porco para a mãe de Ana convencê-la a vê-lo, mas de nada adiantou, nos seus momentos livres, gostava é de sonhar com as letras dos poucos livros que pegara escondido na escolinha da igreja.



      Quando o novo Coronel chegou, a fama de homem bravo e cruel já o precedera. Dizia-se no povoado que a mulher morrera de febre no Amazonas e, desde então, vivia só, que tinha estranhas manias e punia toda insubordinação cruelmente. Ana Maria desconfiava das conversas do povo, nos últimos tempos, ganhara a alcunha de Aninha Machadão por ser a única que não aceitava os namoros dos moços, de nada adiantavam os conselhos da mãe, aos 19 anos, ela jurava que não iria deitar-se com homem nenhum, jurava e não se importava com os moleques que a perturbavam, quando passava na rua, cantando ao seu redor:
          — Aninha Machadão!
          — Aninha Machadão!
      
     A mãe adoecida e os irmãos pequenos não lhe deixaram outra opção. Mesmo com medo, foi trabalhar no casarão do coronel. José Ambrósio Ferreira era, acima de tudo, um homem duro, porém justo. A primeira vez que os olhos de Aninha pousaram no coronel, a força dentro da farda perturbou mais a menina do que a pouca atenção que ele lhe dispensou, a voz fria e dura contrastava com o olhar escurecido e algo melancólico.

     Assim passaram-se três semanas e, quando o Coronel chamou-a naquela manhã, foi sem receio que ela aceitou, a partir daquela data, ficar até mais tarde da noite, o salário iria aumentar e ainda poderia levar as sobras do jantar para casa. Aquela foi uma noite marcante para a vida de Aninha, os olhares dos convidados não a incomodavam mais do que a ausência de interesse daquele homem grisalho que a impressionava. O cheiro do coronel lembrava Aninha das folhas verdes da horta e perturbava os seus olhos.

       Agora ela já não enfaixava os seios e cerzira de novo as barras do vestido; uma tarde, sentiu pela primeira vez o olhar do coronel queimando a sua pele, quando socava o pilão, o vestido solto no corpo, ergueu os olhos e corou as ver a cobiça sumindo rapidamente no militar garboso. Os cabelos castanhos soltos, o corpo delicado, a pele beijada pelo sol, impossível não notar aquela beleza morena. O coronel que sempre parecera não notá-la, corou e partiu.

      Ana Maria sofria. Quando chegou junho, a fogueira de São João brilhava tanto quanto os olhos da menina ao ver o coronel, toda bonita e perfumada na chita nova e engomada, no indiferente boa noite perdeu o rumo. João, o ruivo troncudo que não perdia a esperança, dançou com ela a noite toda e, quando a chamou para dar uma volta, um olhar ao coronel, distraído com as moças da cidade a ajudou a decidir-se. Entristecida, deixou-se beijar e aceitou a carona do rapaz. Depois que entrou na velha caminhonete azul, de nada adiantaram os gritos e chutes da moça para impedir João de levá-la ate seu sítio.

       — Desce Aninha, adianta nada gritar assim, ocê sabe que tamo sozinho aqui — ele dizia, enquanto a puxava com brutalidade do carro — Ocê ta toda perfumosa ansim pra que? Chega de frescura, vamo decidi logo nossa vida.

             — Não faz assim não, João, deixa eu ir, deixa...— a moça pedia enquanto era arrastada para dentro da casa. Os dedos de João eram dois ferros no braço da moça, e quando ele a jogou na sala, ela tentou correr, mas duas bofetadas jogaram a garota no chão.
           — Eu num quero machucar ocê, mas se aquieta — Ele vociferou, depois mais calmo, foi falando: — Nós vamo casar e ocê vai ter toda essa casa procê.

       Os olhos de Aninha encheram-se de lágrimas quando a bonita chita, escolhida com tanto carinho para o coronel, foi rasgada. — Ai que seus cabelos são tão lindo Aninha... como eu queria eu pegar seus peitinhos...

       A mão rude na sua pele fina lhe deu uma vertigem, e sentia-se caindo para um outro mundo quando a porta veio abaixo. Um tiro certeiro livrou João para sempre do desejo que o atormentava e foi para os braços do coronel que Aninha correu. Soluçando, enrolada numa velha manta verde, ele a levou para casa.

       Os olhos baixos na cozinha, o sol já ia alto e ela preparando o café. Estremeceu quando o coronel entrou, sentindo os olhos fixos nela:

       — Você está bem, Ana Maria?

       Sem esperar pela resposta, ele avisou que iria viajar, e que se ela quisesse podia ficar um pouco com a mãe.
       — Coronel...
              — Fala guria, não tem que se acanhar não.                                                                    
       — ...E o tiro de ontem?

       — O povo está falando que o tal guampeava um homem casado e que ontem ele pagou as contas para o marido, você não tem nada com isso, é uma guria solteira que estava em casa ontem. — A voz firme não admitia respostas. Aninha concordou com a cabeça. Foi uma semana de tristeza e vazio para a moça.

       — O coronel volta hoje, mãe... — E os olhos da moça revelavam o inferno de sentimentos dentro dela, quando voltou ao casarão. Um embrulho nas mãos, o coronel entrou pisando duro na sala — Pra você, Ana Maria, pra compensar o outro. — E do mesmo modo, saiu pisando duro pela casa. Então ele havia notado, o vestido com renda rosa, marcando a cintura fina, mais a volta do coronel encheu os olhos da menina de alegria. Ele tinha notado. Ainda que para ele, ela fosse sempre Ana Maria, e não a Aninha de todo dia, ele notara.

      A noite, acompanhado por outros militares, mandou que Aninha servisse limonada aos convidados, entretanto, enquanto os presentes disfarçavam um olhar cobiçoso, ele não a notava dentro do vestido novo. Quando todos já haviam partido e depois de limpar a cozinha, ainda em trajes foi até a sala: — Eu trouxe um café... o senhor aceita?

     Os olhos do coronel subiram das anotações que lia e enquanto ela servia o café, viram a marca roxa deixada na semana anterior, sem se conter, tocou suavemente as marcas no braço dela. Aninha estremeceu, parada em frente ao homem que queria, respirando com força para não faltar o ar, olhava para ele, que suspirou, depois a puxou para perto, as mãos percorreram a face corada, apertaram suavemente o lóbulo da orelha delicada, o nariz embriagando-se com o aroma de ervas do corpo da moça, ele encostou a cabeça no peito frágil, que respirava acelerado. As mãos de Aninha passeavam agora pelos cabelos macios, aspirando o cheiro que a deixava tonta, apertando-o contra os seios. — Ah, guria! — Suspirou o coronel — Minha guria...
    
       — Eu tive tanto medo, e quando o senhor foi se embora....
       — Shsss... Já acabou viu, fique quietinha, assim...

       O corpo jovem, a pele macia e o abandono da menina acabaram com as reservas dele, suas mãos desceram pelas costas esguias, subiam pelas pernas morenas, que tremiam, suspirando baixinho. Quando os dedos fortes tocaram o tecido entre as coxas firmes, ocultos pelo vestido simples, Aninha sentiu as forças sumindo e só não caiu porque o coronel a segurou nos braços. Sua boca buscou a dele com fome,  as línguas se enroscaram num beijo longo e molhado, mas quando o beijo acabou, ele a afastou. Perturbado, o coronel a fez sentar-se, suavemente.

     — Me perdoa guria, me perdoa…— Ele dizia, a respiração ainda rápida pelo desejo guardado.
     — Não meu coronel, não pede perdão não... não vai meu coronel, fique...

           Mas os passos já saiam da sala, deixando-a com uma estranha vontade de chorar.
     
      Foram dias difíceis os que se seguiram, os ordenanças mais sentiram a animosidade do homem, o coronel andava ríspido, duas ordens de prisão por motivos banais, exercícios e treinamentos estendiam-se ate tarde, no entanto, ninguém ousava reclamar. Almoçava no quartel e só voltava para casa quando a noite ia alta e ela não estava mais lá. É apenas uma guria, repetia-se ele, como um aviso, apenas uma guria, murmurava, tentando esquecer a pele cálida sob suas mãos. Aturdido, revia a imagem desamparada, seminua, atirara sem dó no maldito, há muito ele já percebera os olhares do homem seguindo-a e, num impulso seguiu o casal, tentando se convencer que não estava enciumado. Só de imaginar as mãos rudes tocando a delicada Aninha, bufava de raiva, amaldiçoando-se mil vezes por desejar fazer o mesmo, um canalha, isso sim, era um canalha. Assim, nestes pensamentos de culpa e ânsia, passaram-se algumas semanas.

     Noite alta, garrafas vazias mostravam que algo estava errado, sozinha pela casa, mesmo com medo, tomou uma decisão. Era ainda madrugada quando Aninha chegou e sabia que ele ainda estaria ali, tentando se recuperar das doses de cachaça ingeridas na noite anterior. Revirara-se na cama a noite inteira e o medo fora embora, se fosse despedida, o tempo arranjaria tudo, só não agüentava mais sofrer assim. Não sabia como, mas seria naquela noite. Quando o Coronel a viu na cozinha, entre as panelas, o aroma de café no ar era um convite e mesmo irritado, sentou-se à mesa.

       — Seu café, Coronel.— A bebida fumegante e saborosa, o jeito arisco de olhar acabaram com o mau humor dele.
             — Ana Maria, eu trouxe do Rio um café de lata, italiano, pegue lá, é hora de ver se é bom mesmo. Ela sorriu, feliz. Havia fingido não notar a irritação dele com sua presença. Tremia ao vê-lo assim tão perto mas não  desistiria. Quando Aninha aproximou-se, perguntou:
           — Se o coronel permitir, posso tomar um pouquinho também?
          Disse essas palavras quase sem fôlego. Ele riu e disse que sim, puxando uma cadeira, mas a garota respondeu que não precisava, ficaria em pé mesmo. —Eu faço questão — Disse e olhou nos olhos cor de mel, desviando-os em seguida. Quando ela serviu as xícaras, suas mãos tremiam, o que perturbou ainda mais os instintos dele, ao ver a menina bebendo o liquido marrom, não conseguia parar de olhar a boca pequena, se antes ela sofria por não ter atenção, o reverso a queimava de antecipação que derramou parte do café no colo claro deixado a mostra pelo decote, escorrendo pelo vestido o liquido revelador.
        — Ai eu sou mesmo um desastre, desculpa coronel. Ela levantou-se rápida e ele levantou-se junto.
    — Espera guria, ta doendo?
    — Foi nada não — E os olhos dele e dela seguiram para o vestido molhado, onde as marcas na pele se faziam ver.
     
    O silêncio era palpável, os olhos faiscaram e sem saber nem como, a boca pequena foi esmagada pelos lábios dele; saciava-se o coronel de toda sede daqueles dias, só pra descobrir que iria sempre querer mais e num estremecimento, largou o corpo frágil. O homem arfava, os lábios úmidos do seu deleite... mas não se aproximou novamente. Lentamente ela se afastou, levantou, tremia e não era medo, sentia-se livre, o corpo reclamava que se livrasse das vestes e ali mesmo fosse de vez mulher, mas ela não disse nem fez nada, sem deixar de olhar para ele,mãos trêmulas, serviu um copo de suco, oferecendo-o ao seu patrão. Calado, ele bebeu e saiu. A garota desabou a chorar quando a porta se fechou, mas aos poucos, acalmou-se, ele não a mandara embora e o modo como tocara-lhe o corpo não deixava duvidas, o coronel a desejava e ela mesma não queria mais passar as noites rolando na cama, sonhando com ele.

     Naquela mesma noite, o coronel entrou na casa vazia com a cabeça latejando, o dia inteiro sentira a presença atrevida junto dele. Seu rosto, sua pele, estavam impregnados do cheiro de Aninha, podia sentir no ar... A farda o incomodava, mas preferiu abrir a garrafa de conhaque, tomando no gargalo, com a esperança de esquecer o que seu corpo pedia. Entrou no quarto pensativo, quando sentiu os braços frágeis agarrando-o por trás, a voz rouca tirou-lhe o siso, murmurando baixinho: — Deixa eu ficar meu coronel, só hoje, eu quero.

     Podia sentir os seios duros espetando-lhe as costas como se ela estivesse nua, virou-se e a viu no seu quarto, os olhos embaciados o fitavam, os cabelos longos e soltos, esperava por ele, o peito subindo e descendo. — Ah guria, você quer me enlouquecer de vez, é isso. O que está fazendo?

     — Eu quero ser tua, não vou dormir sozinha... não vou deixar você sozinho aqui. — Apesar do silêncio, continuou. — Amanhã de manhã eu já quero ser uma mulher de verdade... tua mulher...tua amante, tua... — Enquanto dizia isso, lentamente se aproximava e com um gemido, ofereceu a boca aos lábios que desejava.

       Sem resistir mais, ele agarrou o corpo que se oferecia, beijou os lábios macios, provou a pele delicada, mordeu-lhe de leve os ombros, descobriu o caminho do colo suave e a boca murmurava contra a pele em fogo: — Ah, como eu quero você, mas você é só uma guria, o que eu tenho a te oferecer menina? Você está fora do juízo é? Não pode atentar um homem assim... 

      Aninha estremecia e o corpo dele a empurrava sobre a cama, sem deixar de passear pelo corpo trêmulo, as mãos e a boca tocando cada pedacinho da pele morena. Agora as pernas, os quadris e toda a Ana, entregavam-se aos lábios que pareciam buscar seu avesso. O corpo jovem sacudiu-se de prazer, mas ela o agarrou, pedindo, implorando, quando ele levantou-se, ainda fardado, levantou-se com ele, ainda tremendo, ajoelhou-se: — Não me mande embora meu coronel, quero ficar...

       — Não, Aninha. Nunca mais você irá embora, e que Deus me proteja, mas eu sempre quis que você fosse só minha. Eu amo você, amo o teu cheiro, a tua pele, os teus passos, não vivo mais sem você comigo...
    
       — Eu amo você também meu coronel, amo tanto que dói aqui dentro.— Aninha sorria e, ainda ajoelhada, começou a tirar o coturno daquele que era o seu amor. Tocando os pés amados, subindo com as mãos, desejando lhe dar tanto prazer quanto ele lhe dera, sob o olhar sequioso, tirou a farda que os separava e as mãos curiosas se aqueceram no corpo dele.

       O coronel estremeceu quando a boca pequena gemeu e provou o calor da sua pele — Ah! minha guria... — Ah, meu José — Ela murmurou baixinho, saboreando o sabor do nome amado, quando as mãos tocaram-lhe os cabelos macios, ensinando-lhe como lhe dar prazer. Rolaram depois pela cama, a nudez, a pele, o corpo forte subjugando o corpo delicado, a delicadeza feminina dominando a força pela paixão e, quando ela teve medo ele a aquietou, deslizando os lábios sem pressa. Uma leve camada de suor cobria a pele morena quando Aninha encontrou seu lugar no mundo, ao sentir que finalmente era a mulher do coronel que tanto amava. Com força, com delicadeza, entre as sombras da noite, a madrugada os encontrou ainda nos braços um do outro, se conhecendo, saboreando cada desejo guardado naqueles meses. Cada centímetro de pele descoberta, entrelaçados de corpo e alma.

     Os ordenanças que faziam a ronda da noite respiram aliviados quando o sol nasceu e nem Aninha nem o Coronel saíram do casarão, teriam por fim uma folga no serviço e, depois daquela noite, Aninha tornou-se Ana Maria Ferreira. Ela e o Coronel José nunca mais dormiram separados

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