— Você é Emo, professora?
Creio que só se Machado de Assis em pessoa aparecesse ao meu lado, torcendo ironicamente a pontinha do bigode, minha surpresa teria sido maior. A pergunta foi sussurrada logo após um leve puxão na minha blusa. Desconfiada, respondi o único termo lógico para o momento:
— Não.
Compenetrada, voltei-me para o restante do grupo em círculo (ou circunferência, como preferem alguns), porém a pergunta martelava sem parar na minha mente. Trocávamos nossas experiências com o mundo machadiano, quando surgiu essa questão, e agora eu não conseguia esquecê-la. Emo? Será que me empolguei demais com Bentinho, Capitu e os nomes rabiscados? Não, não! Sabia que não devia ter confessado chorar ao ler o Seminarista pela primeira vez, foi isso, só pode, mas o que é mesmo um Emo? Emocionado, emocionante, emo... ? Ah! Emotivo, é isso. Deve ser o Seminarista, que memória desse moleque, o Seminarista foi no bimestre passado.
Sacudi meus nada emos cacheados cabelos, e tentei concentrar-me nas discussões na sala. Emo! Eu? Chorona, talvez. Sensível? Seguramente. Mas Emo?
Senti novamente o puxão ao lado. Essa não, nem vou ousar olhar, mas a insistência não me deixou escapar. Olhos curiosos por trás dos óculos, calmamente me lançaram mais uma:
— Então você é roqueira, né professora?
Indignei-me! Já era demais, só podia ser castigo, sabia que não devia ter engavetado aquele bolo de redações e ido feliz ao cinema, ou então foram aqueles dois bombons, é isso, chocolate demais. Franzi do modo mais ameaçador que pude as minhas sobrancelhas, calando com os olhos o perguntador. Ora, o que tem esse garoto hoje? Primeiro Emo, agora Roqueira, ta certo que gosto de metal medieval, ta certo que até tive uma fase meio gótica, mas... no meio da aula?
Enquanto isso, a sala em polvorosa votava se era melhor sujar-se gordo ou sujar-se magro, dois ou três preferiam a limpeza, mas eram minoria. Acalmei os ânimos, principalmente de um mais nervosinho que queria sujar-se gordo ali mesmo acertando o nariz do colega que discordava das suas opiniões. Nem olhei para o perguntador, sabe-se lá qual podia ser a próxima duvida.
Finalmente consegui concentrar-me no grupo, e entre vários braços e polcas machadianas, encerramos nossas trocas de leituras das obras do Bruxo de Cosme Velho. Vencida pela curiosidade, voltei-me ao questionante ser, que com certeza não se deixou envolver pelo universo do autor com o resto da turma, visto as dúvidas que o cercaram durante a aula. A explicação foi um tanto quanto peculiar. Com um ar de “é obvio profe”, justificou:
— A senhora está de “Allstar”...
Penalizado diante do meu perplexo silêncio, ele tentou explicar que só Emos e Roqueiros usam Allstar, uma regra que aparentemente todo mundo sabe, menos eu.
O sino o salvou de um faniquito no melhor estilo rock n roll. Então eu, trinta anos completíssimos, felicíssima por meus amados tênis de adolescente estarem definitivamente de volta as vitrines, teria que rotular-me ou encaixar-me em alguma tribo para ter direito a eles? SÃO MEUS, tive vontade de gritar, por direito adquirido, uso precursor e emoções vividas e revividas. Mas toda essa indignação, parece uma sensibilidade meio exagerada, será que eu...
Que dias! Que dias! Até para um tênis tenho que me justificar? Parece que vislumbrei num canto os bigodinhos torcendo-se com ironia para mim, ah, não, deve ser sono, melhor ir pra casa dormir. Acho que para a próxima aula, pintarei meus cabelos de preto, farei uma bela escova lisa e assumirei toda minha ancestral melancolia, e de Allstar vermelho no pé. Afinal, como diz um dos meus quintanares preferidos, tudo passa, “eu passarinho”.
**
* Esse texto é dedicado ao John Carlos, meu querido, perguntador e inspirador aluno.
* Os textos de Machado de Assis lidos que testemunharam o citado caso são: “Uns braços”, “Suje-se gordo”, “Um homem celébre” e o de sempre e clássico “Dom Casmurro”.
* Ah! Quanto ao termo quintanares, refiro-me é claro aos apaixonantes versos de Mário Quintana, no seu poeminha do contra / Todos esses que aí estão / Atravancando o meu caminho/ Eles passarão... / Eu passarinho!
* O fato aconteceu assim ou quase um pouco mais um pouco menos, em um confuso agosto poeirento. Terminou-se o caso e fez-se a ata.
Nenhum comentário:
Postar um comentário