El Cavajú Pÿta - Voo pela liberdade
É ele, eu sei que é... e agora? Ay Dios, que faço? Que faço... Os soluços de
Uiara eram sussurros, mal-ouvidos por ela mesma, temia e tremia ser vista,
sabia que ele viria um dia, mas não assim, a vida inteira preparara-se em seus
pesadelos para este encontro, mas nunca, nem nos piores momentos de medo, se
imaginara assim, sozinha e despreparada. Mas como pode alguém estar preparado
para a visita da dor?
A risada
sinistra, o cheiro fétido e as mãos imundas rasgavam o pão sobre a mesa, bebiam
o café e olhavam ao redor, sempre a procura de algo para tomar.
Uiara escondera-se
no pequeno armário, dentro da despensa, quando escutara os tiros e a porta
sendo derrubada com força, fora para o único lugar onde podia se esconder. Rezava,
do seu jeito, a Deus, aos santos, aos pais que já haviam partido e a deixado
tão só. Onde estaria Ramón? Onde estaria o homem que a tinha como filha,
estaria morto, ferido? Jamais deixaria que aquele monstro chegasse até ela.
Soluçava em silêncio, tinha medo de respirar, a pele estava pegajosa, o suor
escorrendo debaixo da chita, o coração batendo tanto parecia um tambor avisando
sobre seu medo. Ramón jurara que nunca a deixaria só, e tinha prometido aos
pais, no leito de morte, dar a vida por ela, será que a promessa havia sido
cumprida? Uiara sentia-se sozinha, rezava por Ramón, seu único amigo.
Agora ele
mordia o pão, cheirava e rasgava a lingüiça pendurada, suspirando de prazer,
tomando a água límpida da jarra, mastigando furiosamente o alimento encontrado.
De repente, ele parou.
Dios mio. Uiara tremeu e tentou não
respirar, viu quando ele virou lentamente o corpo e passou os olhos pela porta
entreaberta da despensa, o monstro tinha instintos apurados, diziam no povoado
que tinha parte com o Coisa Ruim, a jovem se benzeu, fazendo o sinal da cruz,
encolhendo-se mais no fundo do armário, sentia o cheiro das coisas guardadas,
do sabão de graxa, do eucalipto que usava para perfumar as roupas limpas, mas
sentia também o cheiro de maldade que invadira a sua cozinha. Cheiro que agora
se aproximava lentamente de onde ela estava.
Quando ele
abriu a porta, o sorriso maldoso, os olhos procurando por ela, chamando,
dizendo seu nome, gargalhando, uma força desconhecida moveu Uiara, não seria
tomada por aquele homem. Tudo começara por causa da terra, mas agora, ela se
lembrava da irmã, o corpo marcado, os olhos enlouquecidos, coberta de mordidas
e queimaduras, a insanidade foi uma benção diante do que passara. Depois de
tanta luta, guerra, Uiara fugira da vingança, da insana vingança daquele que
chamavam de El Cavajú Pÿta, ou Cavalo Vermelho, louco, insano, mau. Sujo de
corpo e alma.
Ele sabia que
ela estava ali, sorria e chegava feito uma onça, pressentindo o cheiro de medo,
rindo de sua desgraça, antecipando de forma descuidada o prazer da matança. Um
espeto de ferro, esquecido em um cantinho encheu as mãos da moça, e quando os
olhos claros, o cabelo de fogo e os dentes podres estavam tão próximos, ela
abriu a porta do armário de repente, investindo nele, furando o canto do peito,
gritando toda dor e medo que guardava desde menina, mas El Cavajú era rústico,
bruto, empurrou a garota, e tocou o espeto, feroz, gritando: chega de fugir guria, vai pagar, finalmente a tua raça vai sumir
desse chão de inferno.
Cuspiu de
lado, arrancando o espeto, levantando meio mole do canto onde havia caído. Uiara
caminhava de costas em direção a porta, quando percebeu o sangue manchando a
camisa suja e o homem ruivo se levantando, virou-se e correu. Desejou, na
ardência da alma, ter asas.
Na porteira, o
corpo de Ramón a esperava, coberto sangue e terra, caído no chão que jurara
proteger. Uiara corria, corria, berrava desesperada por socorro, sem ver para
onde ir, deixando a pele ferir-se no mato que crescia, os joelhos morenos esfolados.
Ouvia a
risada, a gargalhada empestando o ar, cada vez mais perto, corria e corria, o
coração explodindo no peito. O bandido que a seguia era um homem alto, ruivo,
barbudo, havia recebido o apelido devido à crueldade com que atacava as
pessoas, como um verdadeiro demônio.
Uiara correu
tanto, e de repente parou. A sua frente, a terra abria-se em uma cratera,
estava em frente ao terrível Buraco das Araras, voltou-se trêmula, tentando dar
a volta, mas El Cavajú já estava perto, sorrindo, os dentes apodrecidos, os
cabelos empastados, a pele encardida, chica,
chica, não tem pra onde ir...
Uiara olhou,
viu o que a esperava, os olhos de cobiça, de fera, em seus joelhos, a crueldade
escorrendo viscosa dos olhos azuis, e atrás, cheiro de morte antiga, era no Buraco
das Araras que muitos mortos foram jogados, ladrões, bandoleiros, homens bons
atraiçoados, todos igualando-se no escuro das rochas, apodrecendo ate desaparer
no tempo.
Uiara sonhou
asas e fez seu ultimo vôo. Reviu os pais, o roçado, o gado campeado, a irmã
trançando seus cabelos, os braços de Ramón carregando-a quando ainda menina e
voou pela sua liberdade, venceria assim o monstro que tentara destruir a beleza
de seus dias, mas que jamais a teria.
Pensou que, talvez, lhe esperasse a paz, na morte. Quis o destino, fosse outra a sua sina. Cresceram-lhe longas, coloridas e sinuosas asas.
Uiara livre, agora voava. Da imensidão azul, viu quando o homem a beira do abismo recuava e no ventre de pedras e tragédias de outras eras, erguia-se do Buraco das Araras uma revoada que clamava por justiça.
O bando
trouxe, por alguns instantes, noite ao dia, o homem correu, correu, mas não
adiantou. Asas da vingança o envolveram, engolido primeiro pelas sombras da própria
alma, El Cavajú alimentava a fome da dor que semeara.
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