Crônica do eterno retorno ou Carta ao amado amor

Crônica do eterno retorno
ou 
Carta ao amado amor 


Enquanto caminhava pelas ruas poeirentas desta cidade, desejei ter uma câmera para mostrá-la a ti, não sei se gostaria, mas necessito escrever o que vejo, ou para mim mesma, se mandar serão nossas palavras, se guardar serão minhas?... Pertencem-me porque as ouço de modo intenso agora, e Te pertencem porque esteve comigo, ainda que na memória. Engraçado como pensei em ti quando cheguei aqui, sentir-se-ia bem ou detestaria tudo? Sabemos de ambos tão pouco não é, no entanto sei que se aqui estivesses, arderia por um ar condicionado neste primeiro dia, e talvez me abraçasse no segundo, quando um frio desavergonhado chegou sem avisar, ou talvez me emprestasse uma malha com jeito todo teu.. Sei também que me renovo em tolices por perder-me nestes desejos que nunca realizarei. Por hora, caminho contigo.

Não há conforto nesta casa mais velha que o tempo em que existiu, meu querido, os anos lhe foram cruel, e nestes corredores onde ainda ouço nossos risos e gritos de meninices, há um silêncio pegajoso, nos quartos cerrados ao uso, escondem-se aranhas pequeninas que trato de espantar junto com qualquer tolo pensar, de olhos fechados posso re-viver infâncias esquecidas. 

Entre madeira azul sonhei os primeiros sonhos, pesadelos de infância, temi o escuro e sorri muito, guerras de travesseiros entre paredes incompletas, corridas e esconde-esconde, fomos felizes, brigamos, choramos, gargalhamos... Outras épocas, onde o tempo era medido pelos momentos que vivíamos, e o relógio, desconhecido objeto de adultos. Tempo da experiênciação, tu dirias, tempos de ingenuidades, eu poderia responder. Perdida nestas lembranças e saudades de um ti que não me pertence, me deixo embalar por estas cortes de cortinas, esvoaçando tolamente ao som de alguma brisa irrequieta. Adormeço esperando por poesia. 

O que há nas pequenas cidades que amarram as esquinas impedindo-as de renovarem-se? E justamente estes quadros perdidos que nos fazem voltar e sorrir... Pois ali dei um primeiro beijo, roubado ou de bom grado, mesmo sob os olhares atentos por trás de cortinas, pois vizinhos também resistem e nos cuidavam como pais zelosos por novidades nem tão zelosas. Ali senti as agulhas de certo ciúme, ou ali nos perdemos em planos de viagens e abandonos entre amigos. Nas pequenas cidades são ardentes os anseios por vôos e dormentes as certezas de que as asas nem sempre crescerão. Eu voei, mas só aqui me re-encontro. 

Agora percorro meu quarto de menina, paredes, madeiras que reconheço de entalhes, e telhas que contei e reli quando insone ficava. Neste corredor quantas vezes cruzei, na velha cozinha uma sopa fumegante, ah, minha mãe. Em volta da mesa, risos confortantes, ah, meus irmãos, enquanto o pai, ah, meu pai, chegava com o pão macio e quentinho, jantávamos e éramos família. Ainda somos, separados pelos trilheiros da existência, porém sempre unidos por estas paredes que são mais que matéria desde que nelas nos marcamos e vivemos. 

Caminho agora descalça neste imenso quintal, o chão resgata-me, ainda me sinto tola, é claro, mas disfarço ao tocar as árvores que sempre amei, sim, amor de verdade por cada galho, cada tronco retorcido, por cada folha perdida, meus olhos sobem, tenho desejos de segui-los até meus reinos de outrora... Fruta no pé, viagens aos mundos insuperáveis da imaginação entre meus reinos arborizados. Meus amores primeiros, árvores, terra e céu, eu os amei e os tive. Quando os esqueci me perdi? Serão ainda meus em meio à correria dos dias e noites de agora? Que outros descaminhos me aguardam nestes renasceres? Só me resta vivenciá-los... ouvindo a seiva dos troncos sussurrando minha volta. Nas saudades de mim: penso-te.

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